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Suicídio: falar é preciso, prevenir é possível

A cada cem pessoas no Brasil, pelo menos 17 já pensaram seriamente em tirar a própria vida, e 4,8% fizeram planos, segundo pesquisa da Unicamp

Publicado por: , em 13/09/2021 - Categoria: UTILIDADE PúBLICA

Tempo de leitura: 5 minutos

Falar ou não falar? Eis a questão. Se a morte em si já é um tabu, o suicídio é um tabu dentro do tabu e mata uma pessoa no mundo a cada 40 segundos. A estatística, da Organização Mundial da Saúde (OMS), chama atenção para urgência de derrubar as barreiras que cercam o tema. E se, por muito tempo, falar sobre isso trazia desconforto, agora, conscientizar é um caminho rumo à prevenção. Tema da campanha Setembro Amarelo, este é o assunto da série especial de reportagens “Uma chance para a vida”, produzida pela editoria Mais Conteúdo, que ouviu cuidadosamente psicólogos, psiquiatras, pesquisadores, familiares que perderam entes queridos e, também, pessoas que atentaram contra a própria vida.

De repente, os problemas e as dificuldades ficam maiores, se tornam barreiras quase que intransponíveis. O silêncio, a solidão e o sentimento de não pertencimento e de incompreensão batem forte. E é nesse momento que vidas são desfeitas. Só em Minas Gerais, já foram 150 suicídios por mês neste ano, somando 900 entre janeiro e junho. Além disso, a cada 30 dias, foram 174 tentativas, ou 1.045 no primeiro semestre, segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). Esses foram os casos que entraram para as estatísticas, mas há ainda aqueles que se retiraram da vida ou pensaram nisso sem que ninguém se desse conta. E não são poucos: ao longo da vida, 17,1% das pessoas “pensaram seriamente” em se matar, 4,8% chegaram a elaborar um plano para isso, e 2,8% efetivamente tentaram o suicídio, segundo estudo feito no Brasil por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Entre o pensar e o efetivar a morte de si, existe um limbo. Segundos, minutos, horas, dias se passam. Não há uma regra porque cada caso é único, o que impossibilita qualquer tipo de generalização. Isso é um consenso entre os especialistas ouvidos. Mas uma estatística chama a atenção: para a Organização Mundial da Saúde (OMS), 90% dos suicídios poderiam ser evitados caso a pessoa recebesse a ajuda adequada. Um número que mostra a importância de se debater o tema e reforça o nome escolhido para essa série de reportagens: “Uma chance para a vida”.
A partir de hoje, as plataformas de O TEMPO vão tocar esta ferida aberta, mas ainda abafada na sociedade atual. “O estigma mata. A OMS considera que uma das estratégias para se reduzirem os casos é educar a sociedade sobre o tema”, diz o presidente da Associação Latino-Americana de Suicidologia (Asulac), o psiquiatra Humberto Corrêa. Ele abordou o assunto em 20 artigos científicos e no livro “Suicídio: Uma Morte Evitável”. Segundo a OMS, o suicídio pode estar muitas vezes associado a transtornos mentais e doenças físicas, o que o torna um problema de saúde pública. O órgão também atrela a situação – responsável pela morte de cerca de 800 mil pessoas por ano no mundo – ao abuso de substâncias, problemas familiares, conflitos interpessoais e situações estressantes. A causa nunca é única.
“Precisamos reconhecer que o suicídio é um fenômeno de alta complexidade, multifatorial, e não dá para a gente querer fazer ligações lineares de causalidade – por exemplo, isso gera aquilo. O ser humano não é assim, o campo da subjetividade não é assim, muito menos o comportamento suicida, que é desde a pessoa ter a ideia de se matar, construir planejamentos, tentativas e, infelizmente, as pessoas que chegam ao ato em si”, afirma a conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP/MG), Cristiane Nogueira.
Apesar de, em muitos casos, ser possível estender uma mão e tentar salvar aquela vida, essa não é uma tarefa simples e não deve ser carregada de culpabilidade. O suicídio pode ocorrer de forma planejada, com sinais prévios, ou não. “Não há uma definição concreta de características de pessoas com idealizações suicidas. O perfil que se traça não dá conta da infinidade de afetos que participa disso, porque a dor não tem a mesma roupagem para todo mundo e, em algumas histórias, ela nem é perceptível pelos mais próximos”, diz a doutora em psicologia e estudiosa do tema, Elizabeth Avelino Rabelo.
A atriz, curadora, escritora e jornalista, Brisa Marques, 36, é um exemplo de que não há rótulos para quem questiona a relevância de seguir a vida. Aos 21 anos, ela tinha acabado de concluir duas graduações, de jornalismo e artes cênicas. Talentosa, jovem, cercada de amigos, ela realmente amava viver. “Eu nunca, em nenhum momento, tinha pensado em me matar”, conta em uma conversa cercada de reflexões. Quem a via na rua não sabia, porém, que ela vivia privações dentro de casa. “Eu sou filha única e nasci em uma família sem muito acesso à informação, que não teve oportunidade de desenvolver ferramentas de linguagem e relacionamento. Então, eu apanhei muito, vivenciei muitas violências e brigas dentro de casa. Eu sinto que fui uma pessoa muito oprimida até os meus 21 anos”, lembra. Foi nessa idade em que ela atentou contra a própria vida.
A tentativa, que naquele momento parecia ser a saída para ela, foi um ato impulsivo (sob efeito de remédios psiquiátricos que ela foi coagida a tomar). “Já li muitas perspectivas generalistas sobre suicídio dizendo que sempre é planejado. Mas não foi assim comigo. Hora nenhuma eu pensei ‘quero morrer’. Naquele momento, essa foi a alternativa que encontrei para sair de casa, depois de ter passado por um processo de anulação da vida e de muitas violências. Eu não me sentia viva e queria muito viver. Talvez uma fuga”, conta. Aquela ação, no entanto, deixou marcas na alma e no corpo de Brisa, que segue em processo de libertação das dores por meio de terapias e exercícios físicos. Entre várias outras sequelas, ela teve uma lesão medular, chegou a ficar sem andar e, atualmente, recorre ao auxílio de muletas para se deslocar. “O meu pé queima o tempo todo”, afirma. Mas ela sobreviveu e, mais do que isso, consegue viver do que ama: a arte. Uma sobrevivência que diz muito sobre vida e morte, pois, se ela não tivesse resistido, hoje não teria a oportunidade de dar esse relato: “Sou grata pela oportunidade de estar viva. Que bom que estou aqui. É o que eu tenho a dizer, tendo vivenciado essa experiência”.
Seria um erro contar esse episódio sem ressaltar que essa é a história da Brisa e não se aplica a outros contextos. Até aquele ato, ela tinha vivido uma vida de muitos constrangimentos, violências e opressões familiares, também passou por uma crise após ter sido dopada por um homem em uma festa (ele colocou droga na bebida dela sem que ela soubesse), foi forçada a tomar medicamentos psiquiátricos e trancada em casa. Episódios que deixaram marcas psicológicas profundas. Só que, passada mais de uma década da situação, Brisa vê que, individualmente, nada disso é a justificativa para o que aconteceu. Não há culpados e sempre podemos aprender a respeitarmos os limites de cada um. Por mais que a gente possa buscar informações sobre suicídios e tentativas, nunca chegaremos a respostas absolutas. É sempre uma busca. Viver é muito perigoso, diria Guimarães Rosa”, cita.
Matéria replicada do portal: O TEMPO